Discurso do Papa Bento
XVI na Universidade de Ratisbona
Ratisbona (Regensburg, Alemanha), 12 de setembro de
2006)
Segue
abaixo a íntegra do discurso que o Papa Bento
XVI proferiu em 12 de setembro de 2006, na “Aula Magna” da Universidade de
Regensburg (Ratisbona, Alemanha), que suscitou muitas críticas por ele ter
citado uma frase do diálogo imaginário entre o Imperador Bizantino Manuel II Palaeologus e um erudito
muçulmano persa.
"Mostra-me também o
que Maomé trouxe de novo e encontrarás apenas coisas más e desumanas, como a
sua ordem de difundir através da espada a fé que ele pregava".
Dizem que
as críticas foram tão generalizadas, fortes, contundentes e duradouras, que teriam
se tornado um dos fatores que levaram o Sumo Pontífice a renunciar a seu Pontificado
em 11 de fevereiro de 2013.
“Aula Magna”: Fé, Razão, Universalidade e Reflexão.
Eminências, Magnificências, Excelências, Ilustres Senhores,
Gentis Senhoras, é para mim
um momento emocionante encontrar-me de novo nesta universidade e poder mais uma
vez pronunciar-me por meio desta “Aula Magna”. Meus pensamentos,
contemporaneamente, voltam àqueles anos em que, depois de um grande período
passado no Instituto Superior de Freising,
comecei minha atividade de professor académico na universidade de Bonn. Era em 1959, ainda o tempo da
velha universidade dos professores tradicionais. Para cada uma das cátedras não
existiam nem assistentes e nem datilógrafos, mas em compensação havia um contato
muito direto com os estudantes e sobretudo entre os professores.
Encontrávamo-nos antes e depois das aulas nas salas dos professores.
Os contatos
com os historiadores, filósofos, filólogos e naturalmente também entre os
integrantes das duas faculdades teológicas eram muito próximos. Uma vez por
semestre fazia-se o chamado “dies academicus”, no qual professores de todas as faculdades se apresentavam
diante dos estudantes de toda a universidade, tornando assim possível uma
experiência de universitas uma coisa à qual também o Senhor, Magnífico
Reitor, se referiu há pouco, isto é, a experiência, o fato de que nós, não
obstante todas as especializações, que por vezes nos tornam incapazes de
comunicar-nos entre nós, formamos um todo e trabalhamos no todo, da única razão
com as suas várias dimensões, estando assim juntos também na responsabilidade
comum pelo reto uso da razão este fato torna-se experiência viva.
Sem
dúvida, a universidade era orgulhosa também das suas duas faculdades
teológicas. Era claro que também elas, interrogando-se sobre a racionalidade da
fé, desempenham uma obra que necessariamente faz parte do "todo" da universitas
scientiarum, mesmo se nem todos podiam partilhar a fé, para cuja correlação
com a razão comum se comprometem os teólogos. Esta unidade interior no universo
da razão não foi perturbada nem sequer quando certa vez filtrou a notícia de
que um dos colegas dissera que na nossa universidade havia algo de anormal:
duas faculdades que se ocupavam de uma coisa que não existia, de Deus. Que
mesmo perante um cepticismo tão radical seja necessário e normal interrogar-se
sobre Deus através da razão e isto deva ser feito no contexto da tradição da fé
cristã: no conjunto da universidade, isto era uma convicção fora de questão.
Tudo me voltou à mente,
quando li a parte publicada pelo professor Theodore
Khoury (Münster) do diálogo que o douto imperador bizantino Manuel II Palaelogus, talvez durante os meses do inverno de 1391, em Ankara,
teve com um persa culto sobre cristianismo e islã e sobre a verdade de ambos. Talvez tenha sido depois o próprio
imperador quem escreveu este diálogo, durante o assédio de Constantinopla,
entre 1394 e 1402; explica-se assim por que os seus raciocínios sejam referidos
de odo muito mais pormenorizado do que os do seu interlocutor persa.
O diálogo
alarga-se sobre todo o âmbito das estruturas da fé contidas na Bíblia e no Corão e detém-se sobretudo sobre a imagem de Deus e do homem, mas
necessariamente também sempre de novo sobre a relação entre as, como se dizia,
três "Leis" ou três "ordens de vida": Antigo Testamento,
Novo Testamento e o Corão. Não desejo falar disto nesta aula; gostaria de
tratar só um assunto bastante marginal na estrutura de todo o diálogo que, no
contexto do tema "fé e razão", me fascinou e me servirá como ponto de
partida para as minhas reflexões sobre este tema.
No
sétimo colóquio (controvérsia) publicado pelo Prof. Khoury, o imperador enfrenta o tema da Jihad, da guerra santa. Certamente o imperador sabia que na sura
2:256 lê-se: "Nenhuma coação nas
coisas de fé". É uma das suras do período inicial, dizem os
peritos, quando o próprio Maomé ainda
não tinha poder e estava sob ameaça. Mas, naturalmente, o imperador conhecia
também as disposições, desenvolvidas sucessivamente e fixadas no Corão, sobre a guerra santa.
Sem se
deter em pormenores, como a diferença de tratamento entre os que possuem “O Livro"
e os "descrentes" ele, de modo tão brusco que nos surpreende,
dirige-se ao seu interlocutor, simplesmente com a pergunta central sobre a
relação entre religião e violência em geral, dizendo:
"Mostra-me
também o que Maomé trouxe de novo e encontrarás apenas coisas más e desumanas,
como a sua ordem de difundir através da espada a fé que ele pregava".
O
imperador, depois de se ter pronunciado de modo tão duro, explica
minuciosamente as razões pelas quais a difusão da fé mediante a violência não é
racional. A violência está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da
alma. Diz ele:
"Deus não se apraz com o sangue e não agir
segundo a razão é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do
corpo. Por conseguinte, quem quiser
levar alguém à fé precisa da capacidade de falar bem e de raciocinar corretamente,
e não da violência e da ameaça. Para convencer uma alma racional não é
necessário dispor nem do próprio braço, nem de instrumentos para ferir nem de
qualquer outro meio com o qual se possa ameaçar de morte uma pessoa...".
A
afirmação decisiva nesta argumentação contra a conversão mediante a violência
é: não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. O editor, Theodore Khoury, comenta: para o
imperador, sendo um bizantino que cresceu na filosofia grega, esta afirmação é
evidente. Para a doutrina muçulmana, ao contrário, Deus é absolutamente
transcendente. A sua vontade não está relacionada com nenhuma das nossas
categorias, mesmo que fosse a da racionalidade. Neste contexto Khoury cita uma obra do conhecido muçulmano
francês R. Arnaldez, o qual ressalta
que Ibn Hazm chega a declarar que
Deus não estaria relacionado nem sequer com a sua própria palavra e que nada o
obrigaria a revelar a nós a verdade. Se fosse a vontade Dele, o homem deveria
praticar também a idolatria.
A este
ponto abre-se, na compreensão de Deus e, por conseguinte na realização concreta
da religião, um dilema que hoje nos desafia de maneira muito direta. A
convicção de que agir contra a razão esteja em contradição com a natureza de
Deus, é apenas um pensamento grego ou é sempre válido e por si mesmo? Penso que
neste ponto se manifeste a profunda concordância entre o que é grego no sentido
melhor e o que é fé em Deus sobre o fundamento da Bíblia. Modificando o
primeiro versículo do Livro do Génesis, o primeiro versículo de toda a Sagrada
Escritura, João iniciou o prólogo do
seu Evangelho com as palavras: "No
princípio era o logos". É precisamente esta a mesma palavra que o
imperador usa: Deus age com logos. Logos significa ao mesmo tempo
razão e palavra uma razão que é criadora e capaz precisamente de se comunicar,
mas como razão. Com isto João deu-nos
a palavra conclusiva sobre o conceito bíblico de Deus, a palavra na qual todos
os caminhos muitas vezes cansativos e sinuosos da fé bíblica alcançam a sua
meta, encontram a sua síntese.
No princípio era o logos,
e o logos é Deus, diz-nos o evangelista. O encontro entre a mensagem
bíblica e o pensamento grego não era um simples acaso. A visão de São Paulo,
diante da qual se tinham fechado os caminhos da Ásia e que, em sonho, viu um
Macedônio e ouviu a sua súplica: "Vem
para a Macedônia e ajuda-nos". Esta visão pode ser interpretada como
uma "condensação" da necessidade intrínseca de uma aproximação entre
fé bíblica e o interrogar-se grego.
Na
realidade, esta aproximação já tinha sido iniciada desde há muito tempo. Já o
nome misterioso de Deus na sarça ardente, que afasta este Deus do conjunto das
divindades com numerosos nomes afirmando apenas o seu "Eu sou", o seu ser, é, em relação
ao mito, uma contestação com a qual está em íntima analogia a tentativa de Sócrates de vencer e superar o próprio
mito. O processo iniciado na “sarça” alcança, no Antigo Testamento, uma nova
maturidade durante o exílio, onde o Deus de Israel, agora privado da Terra e do
culto, se anuncia como o Deus do céu e da terra, apresentando-se com uma
simples fórmula que prolonga a palavra da sarça: "Eu sou".
Com este
novo conhecimento de Deus caminha em sintonia uma espécie de iluminismo, que se
expressa de maneira drástica no escárnio das divindades que seriam apenas obra
das mãos do homem. Assim, não obstante toda a dureza do desacordo com os
soberanos helenistas, que queriam obter com a força a adaptação ao estilo de
vida grego e ao seu culto idolátrico, a fé bíblica, durante a época helenista,
ia interiormente ao encontro da parte melhor do pensamento grego, até chegar a
um contato recíproco que depois se realizou especialmente na literatura
sapiencial tardia.
Hoje nós
sabemos que a tradução grega do Antigo Testamento, realizada em Alexandria a
"Septuaginta" é mais que uma simples tradução (que talvez se deva
avaliar de modo pouco positivo) do texto hebraico: de fato, é um testemunho
textual distinto e um especifico e importante passo da história da Revelação,
no qual se realizou este encontro de uma forma que para o nascimento do
cristianismo e para a sua divulgação teve um significado decisivo. No fundo, trata-se
do encontro entre fé e razão, entre autêntico iluminismo e religião. Partindo
verdadeiramente da natureza íntima da fé cristã e, ao mesmo tempo, da natureza
do pensamento grego já fundido com a fé, Manuel II podia dizer: não agir
"com o logos" é contrário à natureza de Deus.
Honestamente
é preciso anotar a este ponto que, no final da Idade Média, se desenvolveram na
teologia tendências que rompem esta síntese entre espírito grego e espírito
cristão. Em contraste com o chamado intelectualismo agostiniano e tomista
iniciou com Duns Scott uma orientação
voluntária, a qual no fim, nos desenvolvimentos sucessivos, levou à afirmação
de que nós de Deus só conheceremos a voluntas ordinata. Para além dela
existiria a liberdade de Deus, em virtude da qual Ele teria podido criar e
fazer também o contrário de tudo o que efetivamente fez.
Aqui veem-se
posições que, sem dúvida, se podem aproximar às de Ibn Hazm e poderiam conduzir até à imagem de um Deus-Arbítrio, que
não está relacionado nem com a verdade nem com o bem. A transcendência e a
diversidade de Deus são acentuadas de modo tão exagerado, que também a nossa
razão, o nosso sentido do verdadeiro e do bem já não são um verdadeiro espelho
de Deus, cujas possibilidades abismais permanecem para nós eternamente
inalcançáveis e escondidas por detrás das suas decisões efetivas.
Em contraste com isto, a fé da
Igreja sempre se ateve à convicção de que entre Deus e nós, entre o seu eterno
Espírito criador e a nossa razão criada exista uma verdadeira analogia, na qual
como disse o Concílio Lateranense IV, em 1215, sem dúvida as diferenças são
infinitamente maiores que as semelhanças, mas, contudo, não até ao ponto de
abolir a analogia e a sua linguagem. Deus não é mais divino pelo fato de que o
afastamos para longe de nós num voluntarismo puro e impenetrável, mas o Deus
verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou como logos e como logos
agiu e age cheio de amor em nosso favor. Sem dúvida, o amor, como diz Paulo, "ultrapassa" o
conhecimento e é por isto capaz de compreender mais do que o simples
pensamento, contudo ele permanece o amor do Deus-Logos, para o qual o
culto cristão é, como diz ainda Paulo,
"adorar a Deus", um culto que concorda com o Verbo eterno e
com a nossa razão.
A agora
mencionada recíproca aproximação interior, que se teve entre a fé bíblica e o
interrogar-se sobre o plano filosófico do pensamento grego, é um elemento de
importância decisiva não só sob o ponto de vista da história das religiões, mas
também sob o ponto de vista da história universal, um elemento que nos
compromete também hoje. Considerado este encontro, não surpreende que o
cristianismo, apesar da sua origem e de alguns seus desenvolvimentos
importantes no Oriente, tenha por fim encontrado a sua marca historicamente
decisiva na Europa. Podemos expressar isto também inversamente: este encontro,
ao qual se acrescenta sucessivamente ainda o património de Roma, criou a Europa
e permanece o fundamento do que, com razão, se pode chamar Europa.
À tese
que o património grego, criticamente purificado, seja uma parte integrante da
fé cristã, opõe-se o requerimento da “deselenização” do cristianismo um
requerimento que desde o início da idade moderna domina de modo crescente a
pesquisa teológica. Visto mais de perto, podem-se observar três ondas no
programa da “deselenização”: apesar de estarem relacionadas entre si, elas nas
suas motivações e nos seus objetivos são claramente distintas uma da outra.
A “deselenização”
emerge primeiro em ligação com os postulados da Reforma do século XVI.
Considerando a tradição das escolas teológicas, os reformadores veem-se diante
de uma sistematização da fé condicionada totalmente pela filosofia, isto é,
perante uma determinação da fé a partir de fora em virtude de um modo de pensar
que não derivava dela. Assim a fé já não se apresentava como palavra histórica
viva, mas como elemento inserido na estrutura de um sistema filosófico.
A sola
Scriptura ao contrário procura a forma pura primordial da fé, do modo como
está presente originariamente na Palavra bíblica. A metafísica aparece como um
pressuposto derivante de outra fonte, da qual é necessário libertar a fé para a
fazer voltar a ser totalmente ela mesma. Com a sua afirmação de ter que pôr de
lado o pensar para dar espaço à fé, Kant
agiu com base neste programa com uma radicalidade imprevisível para os
reformadores. Com isto ele ancorou a fé exclusivamente à razão prática,
negando-lhe o total acesso à realidade.
A
teologia liberal dos séculos XIX e XX trouxe uma segunda onda no programa da
deselenização: seu representante eminente é Adolf
von Harnack. Durante o tempo dos meus estudos, como nos primeiros anos da
minha atividade académica, este programa era fortemente operante também na
teologia católica. Como ponto de partida era feita a distinção de Pascal entre o Deus dos filósofos e o
Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob.
No meu discurso em Bonn, em 1959, procurei enfrentar este assunto e não
pretendo retomar aqui todo o discurso. Mas gostaria de tentar ressaltar pelo
menos em síntese a novidade que caracterizava esta segunda onda de “deselenização”
em relação à primeira.
Como pensamento central
sobressai, em Harnack, o regresso
simplesmente ao homem Jesus e à sua mensagem simples, que viria antes de todas
as teologizações e, precisamente, também antes das helenizações: seria esta
mensagem simples que constituiria o verdadeiro ápice do desenvolvimento
religioso da humanidade. Jesus teria dado um adeus ao culto em favor da moral.
Em conclusão, Ele é representado como pai de uma mensagem moral humanitária.
A finalidade de Harnack no
fundo é reconduzir o cristianismo em harmonia com a razão moderna,
libertando-o, precisamente, de elementos aparentemente filosóficos e
teológicos, como por exemplo a fé na divindade de Cristo e na trindade de Deus.
Neste
sentido, a exegese histórico-crítica do Novo Testamento, na sua visão, coloca
novamente a teologia no cosmos da universidade: teologia, para Harnack, é algo essencialmente histórico
e, portanto, estritamente científico. O que ela indaga sobre Jesus mediante a crítica
é, por assim dizer, expressão da razão prática e, por conseguinte também
sustentável no conjunto da universidade. Na base encontra-se a autolimitação
moderna da razão, expressa de maneira clássica nas "críticas" de Kant, que, entretanto, foi
ulteriormente radicalizada pelo pensamento das ciências naturais. Este conceito
moderno da razão baseia-se, em síntese, num resumo entre platonismo
(cartesianismo) e empirismo, que o sucesso técnico confirmou.
Por um
lado, pressupõe-se a estrutura matemática da matéria, a sua por assim dizer
racionalidade intrínseca, que torna possível compreendê-la e usá-la na sua
eficiência concreta: este pressuposto básico e, por assim dizer, o elemento
platónico no conceito moderno da natureza. Por outro lado, trata-se da
utilizabilidade funcional da natureza para as nossas finalidades, onde só a
possibilidade de controlar verdade ou falsidade mediante a experiência fornece
a certeza decisiva. O peso entre os dois polos pode, segundo as circunstâncias,
estar mais de uma ou mais da outra parte. Um pensador tão estreitamente
positivista como J. Monod declarou-se
platónico convicto.
Isto
exige duas orientações fundamentais decisivas para a nossa questão. Só o tipo
de certezas derivantes da sinergia de matemática e empírica nos permite falar
de cientificidade. O que pretende ser ciência deve confrontar-se com este
critério. E assim também as ciências que se referem às coisas humanas, como a
história, a psicologia, a sociologia e a filosofia procuravam aproximar-se
deste cânone da cientificidade. Contudo, é importante para as nossas reflexões
o fato de que o método como tal exclui o problema Deus, apresentando-o como um
problema acientífico ou pré-científico. Portanto, com isto encontramo-nos
diante de uma redução do leque de ciência e razão que é obrigatório pôr em
questão.
Voltarei
ainda a este assunto adiante. Neste momento é suficiente ter presente que, numa
tentativa de conservar o carácter de disciplina "científica" da
teologia à luz desta perspectiva, do cristianismo restaria apenas um miserável
fragmento. Mas devemos dizer mais: se a ciência no seu conjunto é apenas isto,
então é o próprio homem que, com isto, sofre uma redução. Mas as interrogações
propriamente humanas, isto é, as do "de onde" e do "para
onde", os questionamentos da religião e do ethos, não podem encontrar
lugar no espaço da razão comum descrita pela "ciência" entendida
deste modo e devem ser deslocados no âmbito do subjetivo. O sujeito decide, com
base nas suas experiências, o que lhe parece religiosamente sustentável, e a
"consciência" subjetiva torna-se, portanto, a única exigência ética.
Mas,
desta forma o “ethos”[costumes
sociais] e a religião perdem a força de criar uma comunidade e terminam no
âmbito da discricionalidade pessoal. Esta é uma condição perigosa para a
humanidade: verificamos isto nas patologias ameaçadoras da religião e da razão
patologias que necessariamente devem manifestar-se, quando a razão é limitada a
tal ponto que as questões da religião e do ethos já não lhe dizem respeito. O
que permanece das tentativas de construir uma ética partindo das regras da
evolução ou da psicologia e da sociologia, é simplesmente insuficiente.
Antes de
chegar às conclusões que todo este raciocínio tem por finalidade, devo
mencionar ainda em breve a terceira onda de “deselenização” que se difunde atualmente.
Em consideração do encontro com a multiplicidade das culturas hoje há quem
goste de dizer que a síntese com o “helenismo”, realizada na Igreja antiga,
teria sido uma primeira inculturação, que não deveria vincular as outras
culturas. Isto deveria ter o direito de retroceder até ao ponto que precedia
aquela inculturação para descobrir a simples mensagem do Novo Testamento e
inculturá-la depois novamente nos seus respectivos ambientes. Esta tese não é simplesmente errada; contudo é
grosseira e imprecisa. De fato, o Novo Testamento foi escrito em grego e tem em
si o contato com o espírito grego um contato que se tinha maturado no
desenvolvimento precedente do Antigo Testamento.
Sem
dúvida existem elementos no processo formativo da Igreja antiga que não devem
ser integrados em todas as culturas. Mas as decisões de fundo que,
precisamente, se referem ao relacionamento da fé com a investigação da razão
humana, estas decisões de fundo pertencem à própria fé e são os seus
desenvolvimentos, conformes com a sua natureza.
Com isto
chego à conclusão. Esta tentativa, feita apenas em linhas gerais, de crítica da
razão moderna a partir do seu interior, não inclui absolutamente a opinião de
que agora se deva voltar atrás, à época anterior ao iluminismo, rejeitando as convicções
da era moderna. Aquilo que no desenvolvimento moderno do espírito é válido, é
reconhecido sem hesitações: todos estamos gratos pelas grandiosas
possibilidades que ele abriu ao homem e pelos progressos no campo humano que
nos foram proporcionados. O “ethos”
da cientificidade, afinal, é como Vossa Magnificência mencionou vontade de
obediência à verdade e, por conseguinte, expressão de uma atitude que faz parte
das decisões fundamentais do espírito cristão.
Por
conseguinte, a intenção não é retração, nem crítica negativa; ao contrário,
trata-se de um alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso. Porque com
toda a alegria diante das possibilidades do homem, vemos também as ameaças que
sobressaem destas possibilidades e devemos perguntar-nos como podemos
dominá-las. Só o conseguiremos se razão e fé estiverem unidas de uma nova
forma; se superarmos a limitação auto decretada da razão ao que é verificável
na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua vastidão. Neste sentido, a
teologia, não só como disciplina histórica e humano-científica, mas como
verdadeira teologia, ou seja, como interrogação sobre a razão da fé, deve ter o
seu lugar na universidade e no amplo diálogo das ciências.
Só assim
nos tornamos também capazes de um verdadeiro diálogo das culturas e das
religiões um diálogo do qual temos urgente necessidade. No mundo ocidental
domina amplamente a opinião de que só a razão positivista e as formas de
filosofia dela derivantes sejam universais. Mas as culturas profundamente
religiosas do mundo veem precisamente nesta exclusão do divino da
universalidade da razão um ataque às suas convicções mais íntimas. Uma razão,
que diante do divino é surda e rejeita a religião do âmbito das subculturas, é
incapaz de se inserir no diálogo das culturas.
Contudo, a razão moderna típica
das ciências naturais, com o seu elemento platônico intrínseco, tem em si, como
procurei demonstrar, uma pergunta que a transcende juntamente com as suas
possibilidades metódicas. Ela mesma deve simplesmente aceitar a estrutura
racional da matéria e a correspondência entre o nosso espírito e as estruturas
racionais atuantes na natureza como um dado de fato, sobre o qual se baseia o
seu percurso metódico. Mas a pergunta acerca do porquê deste dado de fato
existe e deve ser confiada pelas ciências naturais a outros níveis e modos do
pensar à filosofia e à teologia.
Para a
filosofia e, de maneira diferente, para a teologia, ouvir as grandes
experiências e convicções das tradições religiosas da humanidade, especialmente
a da fé crista, constitui uma fonte de conhecimento; recusar-se significaria
uma limitação inaceitável do nosso ouvir e responder.
Vêm-me à
mente a este ponto uma palavra de Sócrates
a Fédon. Nos diálogos precedentes tinham sido tratadas muitas opiniões
filosóficas erradas, e então Sócrates
diz: "Seria muito compreensível se
alguém, devido à irritação por tantas coisas erradas, para o resto da sua vida
desprezasse e zombasse de qualquer discurso sobre o ser. Mas desta forma
perderia a verdade do ser e sofreria uma grande perda".
O
ocidente, desde há muito tempo, está ameaçado por esta repulsa contra os
questionamentos fundamentais da sua razão, e assim poderia sofrer unicamente um
grande dano. A coragem de se abrir à vastidão da razão, não a rejeição da sua
grandeza este é o programa com que uma teologia comprometida na reflexão sobre
a fé bíblica, entra no debate do tempo presente. "Não agir segundo razão,
não agir com o logos, é contrário à natureza de Deus", disse Manuel
II, partindo da sua imagem cristã de Deus, ao interlocutor persa. Para este
grande logos, para esta vastidão da razão, convidamos os nossos
interlocutores no diálogo das culturas. Encontrá-la nós próprios sempre de
novo, é a grande tarefa da universidade.
Bento XVI
Ratisbona (Regensburg, Alemanha), 12 de setembro de
2006)
-o-o-o-o-o-o-o-o-
NOTA:
As
imagens foram acrescentadas para melhor referenciar a leitura.
Crédito
especial deve ser dado à Associação Cultural Monfort, de onde extraí quase todo
o texto, do qual retirei as citações no idioma grego e fiz a conversão para
português brasileiro. http://www.montfort.org.br/bra/veritas/papa/papa_regensburg/
Também
usei como referência alguns trechos da “Aula Magna” of the University of
Herensburg, Germany, a quem também devo dar créditos.
http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/en/speeches/2006/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20060912_university-regensburg.html
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